Leia abaixo o artigo traduzido da revista budista “Lion’s Roar”, que fala sobre a influência do budismo na vida de Benedict, religião com a qual ele teve contato durante seu ano sabático quando foi ensinar inglês a monges tibetanos. A revista também trás uma breve descrição do ‘Tibete’ do Doutor Estranho, personagem dos quadrinhos que Benedict viverá no cinema.
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A Vida Budista de Benedict Cumberbatch
Estrelar papéis de Van Gogh e Alan Turing a Sherlock Holmes a Hamlet fez de Benedict Cumberbatch um dos atores mais celebrados do mundo. Por tudo isso, ele permaneceu bem-humorado, fundamentado e compassivo. Ele se senta com Dominic Wells para falar sobre o papel principal que o Budismo teve em sua vida e carreira.
Espiritualidade e arte, mesmo no lugar supostamente desumano e conduzido pelo dinheiro que é Hollywood, estão conectados de perto. Como uma pessoa criativa pode não procurar entender o significado mais profundo por trás de nossa existência?
Quando eu entrevistei George Lucas, ele disse que ser arremessado pela janela de um carro em uma batida em alta velocidade quando era adolescente — nos dias antes dos airbags foi apenas o encaixe do seu cinto de segurança que salvou sua vida — foi o que o fez tomar sua vida desobediente em mãos e procurar se sobressair no cinema. O despertar espiritual que isso provocou também achou expressão na Força, aquela noção mística de equilíbrio que se infiltra em seu universo Star Wars. David Lynch, cujos filmes parecem sonhos evanescentes capturados e fáceis de perceber na tela grande, me contou que ele evitou a psicoterapia porque temia que isso afetaria sua criatividade — mas ele é um incansável defensor da Meditação Transcendental.
Mas a história de Benedict Cumberbatch é de uma maneira a mais impressionante de todas. Em poucos anos desde que aceitou o papel de um Sherlock Holmes dos dias modernos na série de sucesso fenomenal da BBC, o galã da pessoa pensativa se tornou reconhecido como um dos maiores atores da Grã Bretanha. Ele apareceu em blockbusters como Além da Escuridão: Star Trek e O Hobbit e filmes de prestígio como 12 Anos de Escravidão e O Jogo da Imitação. Recentemente ele iluminou o palco de Londres no mais exigente de todos os papéis: Hamlet de Shakespeare.
Alguns críticos atribuem o sucesso dele ao treinamento que recebeu no LAMDA [Academia de Música e Arte Dramática de Londres na sigla em inglês], uma das maiores faculdades de drama da Britânia. Ou aos dez anos antes de Sherlock em que passou, relativamente anônimo, combinando o teatro com papéis na TV e no cinema como Stephen Hawking (dez anos antes de seu amigo Eddie Redmayne receber o Oscar pelo mesmo papel) e um desprezível estuprador milionário em Desejo e Reparação. Mas quando eu encontrei o ator, ele atribuiu seu sucesso à sua época ensinando inglês em seu ano sabático pré-universidade a monges budistas tibetanos em um monastério budista perto de Darjeeling, Índia.
“Eu sempre fui fascinado pela ideia de meditação e o que ela significava”, Cumberbatch me disse. “Na Índia, fui a um retiro com um lama — vários dias de encantamento para limpar e purificar a mente — junto com uma dúzia de outras pessoas. Foi incrível, e meio que flutuei para fora de lá depois de duas semanas. Quando você esteve tão calmo e contemplativo, sua percepção sensorial se intensifica e fica bruscamente focada. Você está recebendo detalhe ao ponto onde você tem que pausar um pouquinho. Foi incrível.
“A quietude é uma parte essencial da atuação”, ele continuou, “então eu já tinha uma certa quantidade de foco nisso de antemão. Um ponto quieto é um lugar muito, muito difícil de achar, especialmente entre o tipo comum de ovelhas despolpadas empurradas pelo mundo piscante da tecnologia moderna.”
Seu treinamento budista, ele reflete, foi particularmente importante em se confrontar com o papel de Sherlock que definiu sua carreira.
“Sherlock Holmes é um personagem interessante”, ele explica. “Ele é alguém que tem deixar muita coisa de lado. Ele tem maneiras de impedir a entrada de ruído branco, como arranhar um violino. Uma delas é que ele é grosseiro com as pessoas, mandando-as calarem a boca o tempo todo.
“Eu acho que há um paralelo real – como um ator, você tem que ser capaz de se desligar de distrações. Eu tive vários momentos inesperados, como na noite de imprensa de uma peça chamada The City, de Martin Crimp. Um telefone tocou na audiência por cerca de cinco minutos. Aquilo tirou muito da minha concentração!”
Cumberbatch é uma delícia de conversar: animado, bem articulado, adotando uma variedade de vozes quando conta uma história.
“Esta é uma conversa abastecida por café” ele meio que se desculpa em algum momento, quando está falando sem parar por dez minutos. “Eu estou tentando juntar muitas coisas –- Eu não falo assim o tempo todo, porque eu tenho um relacionamento com outras pessoas que não duraria!”
Mas há um motivo mais profundo para que, embora leve seu trabalho a sério, ele não leva a si mesmo muito a sério; porque ele continua famoso por ser um dos mais legais e não afetados dentre as maiores estrelas. Foram os monges tibetanos que lhe ensinaram que você não precisa ser entediante para ser sério sobre sua profissão e sua espiritualidade: que humor é uma parte intrínseca e necessária na vida.
“Eles eram pessoas incrivelmente calorosas, inteligentes e humoradas,” Cumberbatch relembra com um sorriso. “Difíceis para ensinar inglês. Eu construí uma lousa, coisa que nenhum dos outros professores pareciam ter feito antes. Com doze monges em uma sala, com idade entre oito e quarenta anos, isso era importante. E essa coisa de recompensa-punição de doces ou nenhum doce, jogo ou nenhum jogo funcionou bem. Mas eles me ensinaram muito mais do que eu jamais poderia ensinar a eles.”
E o que exatamente ensinaram?, eu pergunto. “Eles me ensinaram sobre a simplicidade da natureza humana, mas também sobre a humanidade dela, e do senso de humor ridículo que você precisa para viver uma vida espiritual plena.”
Um exemplo específico não demora a chegar. “Teve um dia que esses dois cachorros estavam em cima um do outro, trepando no quintal e toda aquela risada. ‘senhor, senhor, rápido, senhor, senhor, rápido!’ Esses dois cachorros estavam presos juntos como um pushmi-pullyu [o animal de duas cabeças de Dr. Doolittle]. Os monges estavam no chão rindo. Foi tão engraçado. Eles estavam tipo, “Momento Kodak, senhor, momento Kodak!’ Brilhante!”
Ele ri consigo mesmo, relembrando o momento, e seu entusiasmo é contagiante. Na verdade, há apenas um momento em nossa conversa que a risada para. É quando ele está revivendo uma experiência estressante quando confrontou a proximidade de sua violenta própria morte. É uma experiência que o deixou mais espiritual –- e ansioso para capturar a vida com ambas as mãos.
Benedict Cumberbatch estava filmando uma série para a BBC chamada To The Ends of the Earth na África do Sul em 2005 quando ele e seus amigos foram sequestrados por seis homens armados. Suas mãos foram amordaçadas, e ele foi forçado a entrar no porta-malas e dirigido em ruas irregulares para fora da estrada principal.
Quando o carro parou, ele foi tirado e ordenado a se ajoelhar no chão sujo com seus amigos, um cobertor cobrindo a sua cabeça. Ele tinha certeza que todos seriam assassinados. Tudo o que ele podia pensar era em falar – contando para os atiradores que seria burrice matá-los, que causaria a eles dificuldades em ter o corpo de um ator inglês morto para se livrar. Deve ter sido a performance de sua vida (literalmente), porque os sequestradores os deixaram lá e foram embora.
“Depois disso, ele conta, “eu fiquei meio louco. Eu fui até o fim do mundo em Namíbia e fui numa coisa de viciado em adrenalina em Swapismund. Porque quando você foi forçado em pensar na ideia de que você vai morrer sozinho, você meio que fica ‘Ah, okay, bem, se eu vou ser minha própria companhia no começo e no final desta vida, eu posso fazer algumas coisas loucas com ela no meu próprio ritmo.
Foi, eu suponho, a reação oposta de se tornar um agorafóbico, internalizado e assombrado — há o suficiente disso no meu trabalho! Eu não queria que aquele pequeno incidente me afastasse da beleza da África. Eu queria me juntar às pessoas novamente, não ter medo delas”.
Foi uma resposta maravilhosamente iluminada para um incidente que poderia ter aleijado emocionalmente outra pessoa. Que ele tenha apenas aprofundado seu senso de injustiça social e seu amor profundo pelo próximo ficou abundantemente claro durante suas apresentações em Hamlet. Quando Caitlin Moran, uma jornalista e autora que já entrevistou Cumberbatch previamente, pediu a ele para que contribuísse em um single de caridade para ajudar os refugiados sírios, ele imediatamente concordou. De seu camarim, gravou um vídeo dele mesmo lendo o poema Home: “você tem que entender que ninguém coloca seus filhos em uma barca a menos que a água seja mais segura do que a terra”.
Seu envolvimento não terminou aí. Toda noite no teatro do Barbican, após o término da peça, ele quebrou a tradição com baldes para recolher dinheiro e proferindo, do palco, um apelo pessoal para os frequentadores de teatro. Quase ao fim da temporada, no final de outubro, ele fez manchetes ao redor do mundo soltando um exaltado “Foda-se os políticos” durante seu discurso. Não foi o tipo de linguagem que os frequentadores de teatro britânicos estão acostumados quando vão para uma noite de Shakespeare. A atriz Samantha Morton, por exemplo, apoiou seu criticismo à resposta à crise dos refugiados, dizendo que ela “não pode entender como alguns indivíduos dentro do governo conseguem dormir à noite. ”
Cumberbatch arrecadou mais de um quarto de um milhão de dólares em doações da plateia. Ele teria agido dessa forma sem o tempo que passou com os monges tibetanos? Sem ter tido sua própria experiência de chegar perto da morte?
Cumberbatch é relutante em falar em grandes detalhes sobre suas crenças pessoais e espirituais, mas ele alegremente descreve a si mesmo como budista – “pelo menos filosoficamente” – e diz que ele é atraído para o “transcendente”.
É fácil ver por que, quando sua fama na TV e filmes lhe valeu a escolha dos papéis teatrais, ele escolheu interpretar Hamlet. Não é à toa que esse é o Evereste que todo ator teme e anseia, simultaneamente, para escalar. Na verdade, Cumberbatch é caracteristicamente modesto sobre esse aspecto, dizendo de forma autodepreciativa quando ele anunciou o projeto, “Eu quero dizer que é um projeto muito vaidoso de alguma maneira, não é, Hamlet, porque todo ator quer ter a sua vez, mas, hum, eu quero mesmo ter a minha vez. ”
É mais porque Hamlet é uma peça espiritualmente de questionamento: da aparição do fantasma de seu pai, para seu doloroso “ser ou não ser”, e especialmente a fala chave, “E assim o matiz natural da decisão se transforma no doentio pálido do pensamento. ”
Hamlet sabe que ele deve agir para vingar seu pai; mas ao pensar excessivamente nos certos e errados, e no quando e como, ele falha repetidas vezes. Esse é o ponto crucial e a tensão da peça. Cumberbatch interpretou o papel com uma quantidade não usual de humor físico – atuando como um soldado de brinquedo nas cenas de loucura – o que fez desse, um Hamlet mais orientado para a ação e menos paralisado pelo pensamento do que qualquer um da dúzia de produções que eu vi anteriormente.
Tendo passado mais de uma hora na companhia de Cumberbatch, e ter se maravilhado pela velocidade e articulação que os pensamentos saem dele, está claro que existe uma razão pela qual ele é tão frequentemente escalado como homens superinteligentes – Stephen Hawking, Alan Turing, Sherlock Holmes. Inteligência é uma qualidade que é muito difícil falsificar, se um ator já não a possui.
Mas assistindo sua interpretação como Hamlet, você percebe que Cumberbatch, em comum com o doce príncipe de Shakespeare – e com Sherlock – deve sentir que a velocidade de seu cérebro turbilhonante é tanto uma maldição quanto uma benção.
“Eu amo ar livre, me jogar para fora de aviões, esse tipo de coisa, ” ele diz em um momento durante nossa entrevista. Essa é uma maneira de, por assim dizer, sair de sua mente. Budismo, e a quietude de pensamentos, e a calma que vem através da meditação, é talvez a rota mais construtiva.
“Algumas vezes como um ator você está procurando o infinito, ” ele diz. “Se você consegue manter isso, se fosse consegue lembrar disso no caos, isso vai te ancorar e te dar graça e tranquilidade. ”
Cumberbatch era um desconhecido jovem professor de inglês quando ele fez sua conexão com o budismo em um monastério tibetano em Darjeeling. Ele retornou aos Himalaias como um dos maiores astros de cinema do mundo.
Foi seu papel como Doutor Estranho em seu próximo filme que o trouxe ao Nepal, que foi o substituto para o místico Tibete onde o herói de história em quadrinhos aprendeu suas “artes místicas. ” Cumberbatch disse ao Wall Street Journal que ele estava muito empolgado a respeito da “dimensão espiritual” do filme, e disse que era “uma grande dimensão da minha vida, obviamente. Eu medito muito. ”
Ele filmou cenas em alguns dos locais famosos do Vale de Catmandu, como a estupa budista Swayambhunath, os templos sagrados hindus e os crematórios do templo de Pashupatinath. Foi simplesmente natural tirar algum tempo livre das filmagens e se reconectar com a tradição monástica que inspirou seu interesse no budismo.
No enclave tibetano de Boudhanath, as ruas de paralelepípedos ao redor da famosa estupa são abrigos para alguns dos mais importantes monastérios da diáspora tibetana. O maior, o monastério Shechen, foi fundado por Dilgo Khyentse Rinpoche, um dos professores tibetanos mais influentes do século XX.
Lá, Cumberbatch, acompanhado pelo co-star Chiwetel Ejiofor e o amigo íntimo Adam Ackland, tiveram uma audiência particular com o jovem professor budista reconhecido como a reencarnação de Dilgo Khyentse Rinpoche. Eles tiveram o que foi descrito como uma longa e fascinante conversa sobre a filosofia e prática budista. Depois, um Cumberbatch radiante foi fotografado com Dilgo Khyentse Yangsi Rinpoche, vestindo a tradicional echarpe branca chamado kata que significa um convidado de honra na sociedade tibetana. Seu largo sorriso dizia que sua ligação com o budismo permanece viva e alegre.
O estranho caso do ‘Tibete’ de Doutor Estranho
Dividindo seu tempo entre o Greenwich Village e uma versão altamente mítica do Tibete, Doutor Estranho foi um improvável super-herói dos quadrinhos quando ele estreou em 1963. Agora ele tem seu próprio filme homônimo dos Estúdios Marvel saindo neste Novembro, estrelado por Benedict Cumberbatch no papel principal.
*tradução do trecho da HQ*
“Graças a Osthur, há somente alguns deles!
Ainda assim, se meu treinamento no Tibete não tivesse incluído uma breve introdução às artes marciais
Eu ouso pensar que eu estaria acorrentado agora!”
Como um “Mestre das Artes Místicas”, ele rapidamente se tornou um atrativo na forma de uma contracultura dos anos 60. O mundo de Doutor Estranho ressonou com os jovens curiosos sobre drogas, o oculto, e religião Oriental. O escritor Michael McClure chegou a citar o Doutor detalhadamente na sua peça de 1965, A Barba.
Parte do atrativo era o cenário. O pseudo-Tibete apresentado nos quadrinhos de Doutor Estranho era um país das maravilhas psicodélico misturado com culturas e influências asiáticas – com pouca preocupação com veracidade de qualquer tipo.
Observando que o mentor de Estranho, O Ancião, “era basicamente uma caricatura racista do sábio homem velho tibetano”, o site Birth Movies Death, no verão passado, perguntou para o presidente dos Estúdios Marvel, Kevin Feige, como o filme lidaria ou não com tudo isso.
“O misticismo falsificado é parte do que torna Doutor Estranho interessante”, Feige respondeu, falando ainda que Estranho ‘iria para o oriente’’ no filme, mas permaneceria fora do Tibete.
Se está é ou não a história completa, ainda temos que ver. Como o site The Mary Sue propõe, “Essas não são boas notícias para aqueles que tinham preocupações em torno de apagamento cultural no geral ou da ideia de que a Marvel estava especificamente evitando o Tibete para evitar conflitos com a China, um enorme mercado de distribuição de filmes e um país que, para falar de forma branda, não gosta do Tibete”.
Tradução: Aline, Bru, Juliana e Gi | Fonte