A edição de 5 de janeiro da revista britânica Radio Times traz uma entrevista exclusiva com Benedict e James Graham, roteirista de Brexit (ou Brexit: The Uncivil War, que é o título britânico). Confiram abaixo a tradução completa e os scans:
Pode ser um dos momentos definitórios da história política da nossa nação, mas já faz dois anos e meio que o Brexit se estende, dia após dia; um fluxo infinito de brigas sobre backstops, fronteiras duras, uniões aduaneiras e acordos comerciais. E, apesar de ter divido o país profundamente, todos podemos concordar com uma coisa: não tem sido muito divertido.
Por isso, parece perverso que Brexit: The Uncivil War seja, de muitas formas, o antídoto perfeito. É um drama que faz o que os dramas sabem fazer melhor: oferecer outra perspectiva e dar vida e ritmo a eventos reais, com um elenco fantástico de personagens pitorescos e uma mistura cuidadosa de páthos e humor. Oh, e também tem o Benedict Cumberbatch.
Ele diz que foi “a habilidade que o drama tem de condensar as coisas numa narrativa altamente compacta, divertida e engajante, tirando a pessoa de sua eterna bolha de ciclo midiático” que o atraiu. “Raramente você tem a oportunidade de fazer um drama com relevância tão imediata para sua vida e seu país”, ele continua, quando nos encontramos entre tomadas durante as gravações em junho do ano passado. Cumberbatch se transforma fisicamente (careca no topo da cabeça e com entradas nos lados, como vocês podem ver na foto à direita) e, até certo ponto, mentalmente, em Dominic Cummings, o controverso conselheiro político que foi o coração da campanha Vote Leave, e é agora deste drama.
“Você tem essas ideias incrivelmente complexas condensadas em batidas e momentos de percepção”, diz Cumberbatch. “Eu acho fascinante. Você pode dizer ‘Oh, um drama sobre o Brexit, isso soa como um bocejo’. Bom, na verdade, não. É um dos momentos mais explosivos, extraordinários, engraçados, desesperadamente tristes e provocativos desta era, e transmitir tudo isso em uma hora e 20 minutos é fazer televisão de qualidade. E, nas mãos do James Graham, é incrível – um dos melhores roteiros que eu li em muito tempo”.
Graham foi um motivo fundamental para Cumberbatch aceitar fazer o papel. O roteirista tem esclarecido e revigorado assuntos políticos no palco e nas telas pelos últimos dez anos. Peças como This House, The Vote, Labour of Love e o telefilme Coalition cimentaram sua reputação como um dos maiores dramaturgos políticos da nossa era.
Não é exatamente surpreendente que ele tenha visto uma oportunidade irresistível no Brexit. “Eu sempre acreditei”, Graham diz, “que o drama precisa se envolver com o mundo; que a arte tem a função de nos ajudar a inferir, interrogar e compreender o mundo à nossa volta. E não há nada que precisemos compreender com mais urgência do que o Brexit”.
“Tem havido uma reticência e um nervosismo na minha indústria em relação a se envolver nele, porque ele parece tão controverso, bagunçado e perigoso. Nós meio que nos absolvemos da responsabilidade – deixando que os jornalistas, especialistas e comentadores políticos tentassem compreende-lo. Mas, apesar da história ainda não ter terminado, nós temos a responsabilidade de tentar atrair o público para dentro do caos”.
O caos em específico que Graham escolheu é a campanha relacionada ao Referendo da UE nos meses que antecederam o voto no dia 23 de junho de 2016, seguindo Cummings e seu equivalente no lado da Remain, Craig Oliver (interpretado por Rory Kinnear), diretor de comunicações da Downing Street. O foco está nas táticas que eles usaram em suas tentativas frenéticas de ganhar corações e mentes.
“Todo mundo sabe quem venceu”, diz Cummings na sequência de abertura, “mas nem todo mundo sabe como”. O “como” é o ponto central do drama. Como uma campanha é administrada no século 21: as conversas, o planejamento, os planos de batalha, a invenção de slogans e tudo que acontece entre quatro paredes, nos bares e nos grupos de WhatsApp. É uma coisa pela qual Graham disse ter desenvolvido uma “fascinação geek”: “Como distribuir uma mensagem para as pessoas?”.
O drama explora de tudo, desde grupos focais e campanha de porta em porta ao papel menos perceptível, porém crítico, da coleta de dados. Nos anos desde o referendo, muitas informações emergiram sobre o uso, pelas várias campanhas da Leave, de organizações como a Cambridge Analytica e a AggregateIQ para garimpar os dados de milhões de eleitores através das redes sociais, especialmente o Facebook. Investigações sobre o gasto com isso ter ultrapassado os limites legais estão acontecendo e questionamentos quanto a ética de táticas como essa e até que ponto elas influenciaram no resultados ainda estão sendo feitos.
“Eu não acho que nós compreendemos totalmente o quanto a natureza focada em dados dessas plataformas está mudando nossa estrutura de referência e nosso conceito de realidade e verdade, e como isso pode ser manipulado e abusado por pessoas”, Graham diz.
No drama, Cummings conhece o CEO da AIQ Zack Massingham e fica intricado com o enorme poder da campanha eleitoral de dados para alcançar milhões de, até então, eleitores não registrados. Essas pessoas, ele decide, são as que ele deve conquistar. Logo depois, Massingham e um pequeno time movem o equipamento deles para uma sala dos fundos no escritório do Vote Sair. “Se alguém perguntar, diga que você é meu estagiário”, Cummings diz a ele. A maneira como eles monitoram e influenciam as vidas online das pessoas serve como um contraste afiado aos acontecimentos no quartel general da acampamento da Mais Forte Dentro.
Graham e seus atores protagonistas foram fastidiosos em sua pesquisa, frequentemente se encontrando com personagens e políticos chave no coração das campanhas, e o roteiro é baseado em dois livros: All Out War [algo como “Guerra Toda Fora”] do editor político do Sunday Times Tim Shipman e Unleashing Demons: The Inside Story of Brexit [“Soltando Demônios: Os Bastidores do Brexit”] de Craig Oliver.
Os atores, diretores de escalação, maquiadores e diretores de figurino fizeram uma tentativa triunfal de replicar personagens da vida real, embora Graham insista que a intenção não foi criar algo “Spitting Image” [programa de TV, em português “imagem cuspida”] demais ou imitar pessoas.
“Eu conheci Cummings”, diz Cumberbatch, “o que é importante porque ele está muito longe de mim e eu precisava saber mais sobre ele, sobre sua história anterior, e também observá-lo fisicamente. Tem muito pouco sobre ele por aí – um personagem até então desconhecido que foi tão instrumental no jeito como as coisas foram. Ele é muito estrategista, alguém que trabalhou nos corredores do poder mas não no centro das atenções do poder”.
Cumberbatch poderia simpatizar com ele? “Você precisa quando interpreta um personagem. Claro que precisa. Não importa o que eu senti na época ou o que eu sinto agora. Se trata de como e ele se sente e por quê.
A frustração dele tem a ver com a dominação de Westminster — o carreirismo desconectado que ele sentiu guiou e ainda guia discurso político — apenas ser removido do que as pessoas realmente acham e sentem. Ele sentiu que tudo precisava mudar. Que as coisas precisavam mudar”.
Houve uma preocupação de que o drama poderia ser tomado como o lamento da indústria das artes considerada predominantemente liberal e a favor da permanência?
“Não se trata de criar heróis e vilões — e absolutamente não se trata de dizer, ‘Estávamos certos ou errados em deixar a UE?’ Isso não me interessa como escritor”, Graham diz. “Não é meu trabalho pregar ou julgar. Na maior parte da minha vida de escritor tive muito orgulho e tempo de bancar o advogado do diabo com essa visão [da indústria das artes], tentando interrogar o outro lado, e humanizá-los. Acho que esse é o poder do drama. O Twitter, com seus 280 caracteres, ou um artigo compartilhado online não tem o espaço ou a nuance ou empatia às vezes para andar totalmente pelos passos de alguém com quem você não concorda”.
O que não é, Graham reconhece, é um esforço jornalístico. “Eu não quero que isso parece uma verdade literal”, ele diz. “É por definição um artifício: artistas, atores e diretores aplicando uma escolha criativa nisso. É uma versão da verdade, um pedaço de expressão criativa. E Cummings é um presente de personagem”, Graham acrescenta. “Como quase todos os grandes personagens do palco e da tela, ele é um disruptor. Ele pegou um sistema que fazia coisas de um certo jeito, colocou um vírus nele e o explodiu. Se você concorda com o resultado ou não, é cativante ver pessoas que não dão a mínima, hackear um sistema, rebutá-lo e recarregá-lo.
E o que Graham diz à ideia de que você não pode dramatizar uma história que ainda está sendo vivida? “O Brexit não vai terminar por anos e anos”, ele diz. “É absurdo e altamente irresponsável sugerir que deve existir uma quarentena ao redor da arte. Nos últimos 2.000 anos o teatro e o drama conseguiram interrogar as história do dia.
“O drama é unicamente colocado para atrair uma audiência popular em um espaço onde parece ser possível e seguro desligar ligeira e brevemente o barulho e alguma parte do seu próprio tribalismo político e fazer perguntas sofisticadas sobre o que deu certo e o que deu errado na nossa política. Não estamos dizendo que esta é a história definitiva do Brexit. É a primeira de muitas. As pessoas são bem vindas a continuar acrescentando, mas nós tivemos que começar em algum ponto”.
Brexit: The Uncivil War é tão provocador de pensamentos e emotivo quando é agradável e hilário. E enquanto ele te deixará questionando e curioso, pelo menos — alegria! — chega a um final oportuno. Políticos, anotem.
Brexit estreia no canal britânico Channel 4 na próxima segunda-feira, 7 de janeiro. Na semana passada, saiu a notícia extraoficial que ele chegará ao Brasil no dia 2 de fevereiro pela HBO. Ela vem de fonte confiável, mas a própria HBO ainda não fez divulgação do telefilme.
Tradução: Gi e Aline