Confira esta matéria do jornal britânico The Sunday Times com uma entrevista exclusiva com Benedict Cumberbatch, onde ele fala do personagem Ricardo III em The Hollow Crown. A matéria inclui também depoimentos do diretor da série, Dominic Cooke, e do produtor, Sam Mendes, sobre Benedict.
Há algumas semanas, Benedict Cumberbatch e sua esposa, Sophie Hunter, compareceram a um evento do Presidente Obama em sua visita ao Reino Unido.
“Nós estávamos bem do lado do grupo da imprensa, e havia pessoas lá com lentes de fotografia. Quando eles perceberam que Obama demoraria mais outros cinco minutos, o grupo inteiro apenas foi pfft, pra cima de mim, pra cima do meu rosto. Eu estava tipo “quantas vezes você pode tirar uma foto de um perfil particularmente não atraente — de novo e de novo?’. Quero dizer, graças a Deus que Sophie estava lá, o que meio que desviou a atenção dos fotógrafos, como sempre deve ser. Mas foi vergonhoso.”
Depois, Cumberbatch conheceu o lider do mundo livre, um dos poucos homens que restaram que provavelmente são mais famosos que ele (em 2014, ambos apareceram na lista das 100 Pessoas Influenciais da Time). Não importa como você divida isso, Benedict Cumberbatch, o homem com o sobrenome que soa como peido em um banho, o homem que se parece com o Sid de A Era do Gelo (ambas descrições feitas por ele) de alguma maneira se tornou uma mega estrela colossal da multimídia macro-milenar.
Uma grande parte de sua fama é aquela coisa rara — merecida. Os primeiros dois filmes do novo Bard-buster da BBC, The Hollow Crown: A Guerra das Rosas, contém poucos vislumbres de Cumberbatch como Richard III. Um pouco é tudo que é pedido. Embora ele esteja cercado de praticamente todo grande nome da atuação britânica que não fez a primeira temporada de The Hollow Crown quatro anos atrás — Judi Dench, Hugh Bonneville, Sophie Okonedo, Michael Gambon — é Cumberbatch o magnético. Ele anda pelas cenas como um estilete roubando carteiras na audiência, assobiando uma cantiga.
Em parte, é porque apenas o Ricardo de Cumberbatch quebra a quarta parede, de repente se virando para a câmera para dizer seus solilóquios direto para a audiência, não muito diferente de Francis Urquhart em House of Cards. Mas sua performance durante os três filmes é uma grande aula de repressão, mostrando Ricardo III como um trabalho em andamento, modulações sendo alimentadas por conta gotas, para juntas formarem um retrato de como um jovem rapaz se tornou um dos psicopatas mais notórios da história. Então, em Richard III, o último filme, Cumberbatch está desencadeado, escorrendo malícia e “determinado a ser um vilão”.
“Eu estava fascinado com a ideia de ter a chance interpretar essa trajetória, muitos atores que intepretam o Ricardo não tem,” diz o ator, que completará 40 anos neste inverno. “Ele é alguém que foi trazido a uma família de Adônises (Sam Troughton interpreta Clarence, Geoffrey Streatfeild, Eduardo IV; Adrian Dunbar é seu pai, Ricardo de York]. Eles são espécies fisicamente bonitas, e ele é a criança deformada e aleijada. Ele é alguém que foi um verdadeiro estranho, uma ovelha negra; não perverso, mas alguém que precisou encontrar seu próprio caminho — e foi um caminho político. Ele era o mais esperto do grupo de diferentes maneiras.
Esse arco vem embalado em filmes que são tão sangrentos e abruptos quanto Game of Thrones, uma série que é (livremente) baseada nas Guerras das Rosas. “É a brutalização da guerra medieval. Ricardo testemunha a morte de seu irmão ao alcance da mão, e a execução sumária de seu pai, e suas vinganças brotam delas. Ele é feminizado, rejeitado e menosprezado, e tudo isso em um mundo dominado por homens — isso cria uma bomba relógio que começa bem cedo.”
As peças Henrique VI são alguns dos trabalhos de Shakespeare menos amados. Ainda assim a trilogia e a subsequente Ricardo III foram seus primeiros sucessos comerciais, e indiscutivelmente fazem muito mais sentido reembalados como televisão do século XXI. Os primeiros dois filmes funcionam quase como novela — um jogo de rixas entre duas famílias, York e Lancaster, e dentro destas famílias. Cumberbatch não aparece no primeiro filme, e diz que isso deu a ele alguma distância crítica.
“Como um membro do público do primeiro, posso dizer que o gênio da adaptação é o fato de que ele é condensado, completamente compreensível e totalmente fascinante. A luta é por vezes tão extensa no drama atual que manter o foco em quem é quem, quem está do lado de quem, e por que, é muito, muito difícil de fazer. Mas Shakespeare estava escrevendo para um público do qual tinha que manter a atenção — excitação e euforia tinham que existir, mas também ese desenvolvimento lento que obviamente o ouvido elizabetano conseguia receber.
“Os espectadores de televisão modernos estão famintos por isso, também. Nós vimos isso em todo episódio de drama doméstico, que seja The Sopranos — fale de famílias rivais — ou sagas como O Poderoso Chefão. Você podia prolongar esses três filmes para 14 episódios.”
Os filmes de Henrique, ele acrescenta, parecem politicamente relevantes agora mais do que nunca. “Tudo na política atual está lá nessas peças. Se trata de poder e todas as coisas que estão interconectadas com ele. Você tem virada de relações públicas, operações de bastidores, verdadeiras intenções sendo mostradas, momentos de vulnerabilidade total, exibicionismo. Você tem xenofobia, tem orgulho ultranacionalista, tem amor estilo pro-europeu mais inclusivo. Isso se harmoniza com tudo que está acontecendo na América e todos que está acontecendo com os debates neste país sobre qual é nosso status como uma nação.”
As palavras saem de Cumberbatch — muitas vezes ele vai se segurar e pedir desculpas por “tagarelar”, ou mencionar que ele poderia “falar por horas”, mas que era melhor não. A energia que você recebe dele na tela vem de uma leve tensão nervosa em pessoa — nascida, eu suspeito, de encontros com lentes telefotográficas como aquele que ele mencionou antes da conversa de Obama.
Nós nos encontramos no Hotel Soho durante a exibição de Ricardo III onde ele é o ator com a performance mais impressionante para um grupo de “formadores de opinião”, incluindo primeiros ministros e Tony Hall, o diretor geral da BBC. Quando a bebida dele chega — um coquetel elaborado que parece um canteiro ornamental em um copo — nota o salpico de pó branco no topo e diz: “Isso é açúcar de confeiteiro, eu gostaria de salientar.” Então ele percebe que fez uma piada do tipo que poderia fazer a comédia ser eliminada na impressão e transformada em uma referência a drogas. “Oh céus. Próxima manchete. Por favor não pense assim de mim.” Ele sabe que está constantemente sob observação e, embora entenda por que, ainda não está tão confortável com isso.
Bem, Ben, isso não vai embora tão cedo. Nosso encontrou vem depois que ele viajou rapidamente para Londres do País de Gales, onde atualmente está gravando a nova temporada de Sherlock. Antes disso, ele estava nos EUA fazendo Doutor Estranho, da Marvel, o primeiro no que poderia ser uma franquia de super herói infinita digna de pensão. “Strange” parece adequado — mais tarde, eu pergunto a Sam Mendes, o diretor cuja companhia está produzindo a temporada de The Hollow Crown, por que Cumberbatch é adequado para Ricardo.
“Eu acho que existe — como posso dizer isso? — uma grande inteligência e o que eu chamaria de sex appeal estranho. Obviamente ele não é sexy, Benedict, ainda assim, é. Acho que você pode dizer o mesmo sobre Ricardo III. Aliás, é necessário que ele seja sexy — a peça pede que ele seduza não uma mas duas mulheres, e ele fala abertamente sobre como ele se considera fisicamente um estranho, com sua própria aparência e como sua própria autoestima é baixa. Achei que ele [Cumberbatch] entenderia isso.”
Entre os britânicos que atualmente fazem cerco a Hollywood, Cumberbatch é de fato o diferente. Ele não tem a beleza felina de um Eddie Redmayne ou o refinamento de um Tom Hiddleston, mesmo que compartilhe da boa criação deles. (Surgiu a informação ano passado que Cumberbatch teve como antepassado um primo em segundo grau de Ricardo III). Quando você o escuta falar de Ricardo como a ovelha negra da família de espécimes de físicos perfeitos, ele poderia estar falando de si mesmo na primeira fila dos Oscars.
“Eu tive uma carreira que não é dependente da minha aparência – mas essa é uma grande liberdade para um ator, então eu não sou realmente assim tão vaidoso quanto a isso. Quando a mim mesmo, é claro, eu fico um pouco tipo ‘Deus, eu pareço uma merda’, mas como ator, eu nunca me importei.” Ele é muito esperto para não ver onde a analogia com Ricardo III está indo. “Oh, eu tive uma infância terrível e eu fui desesperadamente deixado de fora!” ele brinca.
“Não, eu tenho tido muita sorte. Eu acho que, como qualquer adolescente, você tem momentos em que você se sente que não pertence, mas eu não posso me arrastar em um poço de ansiedade e dificuldade. Eu tenho uma grande afinidade com pessoas que estão lutando para achar uma voz em um mundo cruel, absolutamente, mas isso não nasceu de uma tragédia pessoal, eu não diria isso. Não há nada para revelar aí.”
Apesar disso, ele interpretou vários personagens estranhos em sua carreira: sociopatas assexuais, intelectuais extremos, artistas e espiões. “Eu não vou negar o fato de que eu já interpretei alguns estranhos, eu não vou negar que já interpretei alguns intelectuais, mas eu também não vou negar que já interpretei alguns caras da porta ao lado, alguns caras comuns, pessoas com quem você sentaria e tomaria uma bebida em um pub. As pessoas querem fazer aquela coisa legal e organizada de desenhar uma linha para juntar os pontos. Eu estou apenas interessado em fazer com que esse gráfico salte para todos os lados, para que as pessoas comecem a franzir a testa.”
Dominic Cooke, o antigo director artístico do Royal Court, que dirige todos os três desses filmes de Hollow Crown, diz que o trabalho de Cumberbatch no teatro é facilmente ignorado: “Ele não interpreta só personagens estranhos. Eu vi Benedict fazer duas peças seguidas no National. Uma foi “After the dance”, de Terence Rattigan – ele estava interpretando esse bastante sofrido, mas muito convencional, homem inglês em 1939, em uma peça totalmente sobre linguagem e controle. Depois a próxima coisa em que eu o vi foi Frankenstein. Nos primeiros 20 minutos, ele estava pelado, fazendo uma dança moderna. Honestamente, eu não acho que exista um ator nesse país, ou provavelmente no mundo, que poderia fazer ambas as coisas tão bem. Essa é uma variedade incrível de habilidades.”
Mesmo assim, Cumberbatch não foi escalado como Ricardo III somente pelo seu talento. Ele foi escalado porque ele é Benedict Cumberbatch, o cara de Sherlock que aparece no Graham Norton; o cara adorado pelas Cumberbitches; o cara que as pessoas comparam com uma lontra em intermináveis memes na internet. Ele se tornou mais do que somente um ator muito bom. A esperança é que Cumberbatch possa ser suficiente para atrair um público mais jovem para assistir Shakespeare. Porque uma crítica que vem sendo feita a The Hollow Crown é a de que gasta muito do dinheiro da BBC para o deleite de um público relativamente pequeno. É arte elitista.
“Eu acho que essa é das coisas maravilhosas em se escalar alguém como Benedict – eu espero que ele traga um público com ele,” Mendes diz. “Além de ser um ator brilhante, ele também é bastante conhecido, e tem um público grande na televisão, juntamente com Hiddleston e todo o restante. Você tem que alcançar aquela pessoa que você sente que está por aí, e esperar que ela encontre.”
“Eu era essa pessoa. Eu fui a Stratford quando tinha 14 anos e sentei lá resmungando sobre excursão da escola para assistir O Mercador de Veneza. No momento em que eu saí, eu estava fisgado. Eu só esperto que existam jovens que irão fazer o mesmo aqui.”
Ele está certo. E se Cumberbatch, o homem para o qual o mundo todo é um palco, não consegue fazer com que os jovens assistam Shakespeare, quem consegue?
Tradução: Bru, Aline e Juliana | Fonte: Cumberbatchweb | Londonphile